Apesar de não sorrirmos desde uma manhã qualquer, em que acordei a teu lado, ficou-me na boca um tragozinho a esse sorriso. Como se os sorrisos tivessem sabor e me tivesses deixado o teu, antes de te ires embora, antes de dizeres que me amavas, antes até de eu te ver desaparecer na escuridão que ficava para lá da porta.

Sei que o coração murmurou, mas na altura não o ouvi.
Levei os dedos aos lábios como que para calar a tua ausência. Senti nos lábios o sabor dos sorrisos que me ofereceste, e na pele o odor inigualável a ti.
Sentia-me cansada. Não percebia bem porquê, e também não tentei perceber. Por vezes preferimos nem saber a verdadeira essência das coisas; a maior arma do ser humano, é mesmo poder escolher entre a lucidez introspectiva e a inconsciência.
Era um cansaço mental, que, estranhamente, me invadia a alma; reparei que estava estranha, fora do normal, como se a alma se pudesse revoltar e vingar-se em mim, no meu corpo, aproveitando algum momento da sua coexistência diária.
Apesar disso eu sorri, quando pensei em ti.
Havia uma vontade enorme de sono, no corpo... e um desejo íntimo de não pensar na alma, na sua revolta, no seu desassossego. Podia descansar e acordar sem alma, não precisava dela de qualquer forma. Nem sabia bem a que é que chamavam alma.

Sorridente e um tanto ou quanto inquieta, deixei-me adormecer. Os meus sonhos foram toldados por cores assustadoramente escuras e por lágrimas brilhantes e duras, parecidas com diamantes, que me queimavam o rosto e me arrefeciam o corpo, semi-adormecido; a minha silhueta pálida e fria, sobressaía no meio daqueles lençois negros que sabiam aos teus sorrisos e a pesadelos indesejados.
Conseguia ver-me, mas não me reconhecia... Esqueci o meu nome, o som da minha voz, o bater compassado do meu coração. Eu, não era eu. E a luz que pousava nas paredes frias, doía-me nos olhos. Ardía-me na pele. Esmagava-me por dentro. Mas eu não sabia porquê. E desta vez, não era retórica, precisava mesmo de saber porquê.
Foi então que aprendi a escutar os murmúrios do coração...





Todas as lágrimas são salgadas. Mas as nossas são mais. Beijar uma das nossas lágrimas, é como sentir os salpicos salgados da água do mar, quando uma onda rebenta mesmo aos nossos pés.

Não somos filhos do mar, mas temos um não-sei-quê de vento salgado que nos roça a pele, o suor e os lábios, como no fim de um dia de praia.
Não somos heróis, mas lutamos cada dia com uma espada de dois gumes; ou somos suficientemente fortes para a equilibrar entre nós e o inimigo, ou acabamos por deixar que seja o inimigo a usá-la contra nós. Não seremos, então, heróis? Talvez mais do que aqueles que usam armas de fogo, mas que são incapazes de saborear um sorriso, um pequeno gesto ou uma réstia de céu. Nós temos a capacidade de distinguir o brilho ou a esperança nas mais pequenas coisas que a vida nos oferece. Portanto, sim, somos heróis.
Então, quem são estes seres raros e impiedosos que nos roubam a normalidade, o ar e a vida?
Não somos diferentes. Quer dizer, não somos iguais aos outros, mas acabamos por ser especiais na nossa diferença: tornamo-nos muito mais humanos. Nós e a aqueles cuja vida foi tocada pela nossa existência. E pela luta árdua e constante, contra essa parede intransponível, fria, brutal e desumana: a Fibrose Quística.
Mesmo que não existam anjos, é assim que somos vistos, quando nos encolhemos sobre nós mesmos, com os braços fininhos a formar umas asas e quando a palidez contorna todos os traços que nos compõem. Aí, nessa altura, somos anjos.
Mesmo assim, os heróis também se despedaçam. E, aos anjos, por vezes, também se lhes quebram as asas. Não deveria ser assim. Não nos deveríamos fragmentar assim, depois das lutas intensas e de todo o valor que damos à vida. E de termos tocado, com a nossa presença, algumas vidas.
No entanto, vale a pena. Pela vida, pelos momentos bons que ainda virão, e pelos maus, que nos ensinam a saborear ainda mais aquilo que de belo a vida nos dá.


(Para aqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer o outro lado, para aqueles a quem a luta se desvaneceu cedo demais, para todos os que, certamente, neste momento, serão anjos. À Sofia Alves, Carolina, Alexandra, Luís, Teresa e a todos os anónimos que não resistiram à parede intransponível, fria, brutal e desumana. Obrigada por terem alguma vez tocado a minha vida.)






Alexandra:



Eras uma criança incrivelmente frágil, de cristal, e incrivelmente forte. Como é possível que esta antítese seja tão real quanto tu?
O tempo passou por ti como se os anos não existissem e a luta constante não servisse de nada. O tempo passou por ti e arrastou-te numa contradança sem fim, com um começo indistinto.
Apercebi-me muito cedo que não te podia salvar. Soube ainda mais cedo que precisava de te proteger do mundo e da crueldade que nele existe; mas não pude salvar-te, desde o início.
Nunca conseguiste ser livre do teu próprio corpo, nunca obtiveste liberdade suficiente para sonhares em paz; os teus sonhos eram turvos e confusos, toldados pelo medo e pela escuridão do incerto.
Quando me davas o teu silêncio, o sangue gelava-me nas veias: eu sabia tão bem que essa contradança em que o destino te iludia não passava disso mesmo, de uma ilusão. E tu também sabias.
Deixaste-me para trás. Prometes-te que se chegasses ao céu antes de mim, me darias notícias, me dirias como era, me farias chegar a informação de qualquer maneira. Como ainda não tive qualquer informação da tua parte, suponho que estejas demasiado cansada para o fazer. Ou isso, ou és um anjo.
As nuvens partiram. O sol já não aquece igual. As borboletas têm cores mais cinzentas, assim me parece. E eu sinto a falta do teu sorriso, que irradiava luz por toda a parte. Sinto a tua falta, meu amor.


Porque é que acontecem coisas más às pessoas boas? Talvez porque precisam de mais anjos no céu.





Eu ouvia-a a falar comigo. Queria responder-lhe, mas os meus lábios permaneciam calados e quentes. Como todo aquele coma. Tão quente, que me queimava os sonhos e tão calado que me fazia acreditar que a minha morte chegara sem aviso prévio. Mas eu ouvia-a. E respondia-lhe. Mas ela não me ouvia a mim.
Conseguia adivinhar-lhe as lágrimas que não chegavam a cair, por detrás da máscara que lhe cobria praticamente a cara toda. Mas ela não chorava. Guardava para si todas mágoas e sentimentos derrotistas, como sempre fizera tão bem.
Sentia-lhe as mãos. Ela entrelaçava sempre as nossas mãos enquanto falava comigo. E mesmo quando não falava. Sentia-lhe o coração, a bater à velocidade da luz, quando ela se debruçava sobre o meu corpo morto para se despedir.
Quantas vezes quis abraçá-la e dizer-lhe para não ir embora e quantas foram as vezes que lhe quis dizer que eu ainda não morrera? Ela sabia. Ela sabia que eu ainda era a sua menina. Mas diferente. Num estado de morte induzida, que aos poucos ia desvanecendo a esperança e a calma.
Lembro-me de sonhar. Sonhava sempre com focos de luz com demasiadas cores, tantas que ficava tonta, prestes a cair, como quando as crianças rodopiam sobre si mesmas e acabam sempre por cair no chão. O meu chão, não existia; caía para o infinito, uma queda que nunca acabava, sufocante e desesperante, incerta e totalmente desequilibrada. Não tinha noção do dia ou da noite, porque os sonhos eram sempre iguais; havia um único momento em que paravam por completo: quando ela chegava. Ela não precisava de me tocar nem de dizer absolutamente nada. Eu sentia a presença dela.






Quando tento reinventar-me e criar uma atmosfera propícia ao encanto dentro de mim, eis que tu chegas e me abraças por trás, inalas o cheiro dos meus cabelos, deixas que as tuas mãos ganhem vida própria e transformas a minha roupa em tecidos banais, escorridos do meu corpo até ao chão.

Gosto quando o teu silêncio me diz que sou a pessoa mais bonita do teu mundo e que em cada dia há algo em mim que desperta em ti essa vontade imensa de me abraçar.
Reparo na iluminação trémula que reside no quarto, e em como as nossas sombras dançam na parede, atenciosamente caladas, para dar voz aos suspiros quase indeléveis que se soltam dos nossos gestos.
Os lençóis já nos reconhecem, assim me parece; pela forma como se moldam aos nossos corpos, pela forma como absorvem o sabor da nossa pele, pela forma como ficam sobre nós, quando nos deixamos vencer pelo cansaço e adormecemos, com as últimas gotas de orvalho fresco da madrugada.
Olho para ti a última vez antes de amanhecer. Tudo em nós grita "eu amo-te", transpira e descansa "preciso de ti".
Até já, meu amor.








Auto-retrato


Trocamos palavras vagas sobre tudo e acerca de nada; tentas explicar-me sem me explicar, que cada alma tem o seu mundo e conhecer outra alma é entrar num mundo transcendente ao nosso. Aceno com a cabeça e finjo que entendi perfeitamente o que quiseste dizer, mas não percebi absolutamente nada. Tu não entendes, pois não? Eu sou uma pessoa comum; tu, és poeta. E falas-me com essa linguagem típica dos poetas, onde as palavras são sublimes e essenciais à sobrevivência. Então eu calo-me com aquele silêncio voluntário de quem não te quer desiludir. Eu sou fraca quando as palavras que rebuscas no teu dicionário mental se espelham na minha frente e se elevam no teu olhar, como quando todas as cores e todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos de um poeta.
A tua poesia incompleta reflecte-se em tudo o que dizes e tencionas dizer, e enquanto rabiscas no ar a perfeição que eu não consigo entender, eu só penso "Apetece-me fazer amor com ele durante horas, tê-lo nos meus braços e dar-me de corpo e alma", e tal como um coração que se segura entre as mãos, numa utopia algures distante, eu queria que fosses assim. Simples.